Como uma viagem à Rússia pode ser muito mais do que uma experiência profissional e comprovar o que nossa avó já dizia: a ignorância, às vezes, é uma bênção.
Fui à Rússia pela primeira vez em 2006. Mas, ao contrário do que acontece com a grande maioria das pessoas, que planejam uma viagem antecipadamente, detalhe por detalhe (ainda mais quando se trata de um país desconhecido de boa parte dos brasileiros), a minha ida foi, digamos, 100% inesperada, 80% atrapalhada e 10% organizada.
Nesses 10%, incluo um visto (era necessário um com data de chegada e de saída) obtido numa velocidade recorde, graças à ajuda de amigos diplomatas que, praticamente, tiraram o embaixador da cama (sentido figurado, claro) para conseguir que eu embarcasse em tempo de acompanhar a reunião de ministros da Fazenda e presidentes de Bancos Centrais dos países que integram o G-8.
Se alguém não tem familiaridade com o economês, G-8 é o seleto grupo das oito economias megatops do mundo, às quais se juntaram, à convite, Brasil e China (e, por conta disso, euzinha).
Ah! Nesses 10% também está a mala que levei com um artigo importantíssimo para ajudar a me ambientar: um chapéu igual ao do coronel Skavurska (do comercial da Net, lembram?). Tudo bem que era verão, e eu era a única “russa” fantasiada de Skavurska. Mas isso é só um detalhe.
E, aqui, outro parêntesis: essa não é uma palavra do vocabulário russo. Descobri isso anos depois, quando minha irmã, a mesma que me deu o chapéu, casou com um russo. Ele simplesmente franziu a testa num movimento facial que aproxima as sobrancelhas – e revela aquela expressão tipo what the hell are you saying? – quando eu, superempolgada e sorridente, perguntei o que significava essa palavra. Com a ajuda do Google, mostrei o comercial para ouvir: “Não faço a menor ideia do que é isso”.
Bom, voltando ao nosso tema proposto, eu escolhi esse meu “batismo” em terras comunistas (deixei sem o “ex” de propósito, para dar mais charme à história) para tentar ilustrar o que chamo no título de “benefícios da ignorância” porque, como vocês poderão acompanhar ao longo do texto (conto com vocês até o final!), a ignorância foi a minha salvação.
E, antes de seguir, vamos alinhar alguns conceitos. O significado da palavra ignorância, a que me refiro, trata de, segundo o dicionário, um “estado de quem não está a par da existência ou ocorrência de algo”. E o de benefício: “ato ou efeito de fazer o bem, de prestar um serviço a outrem; auxílio, favor”.
Assim, depois de lerem este artigo, acredito que vocês vão concordar comigo, que a ignorância, muitas vezes, é realmente uma bênção na vida. E como eu fui abençoada nesta (e também em outras, mas essas ficam para depois) viagem a trabalho.
Sim. Eu fui à Rússia para trabalhar. Como jornalista de economia de um dos jornais mais influentes do país, acompanhava as decisões econômicas ditadas pelo Ministério da Fazenda, pelo Banco Central, Congresso Nacional, em Brasília, e fui escalada para a viagem definida num largo espaço de tempo: pouco mais de dois dias antes do embarque.
Para quem quiser relembrar, aqui, uma entrevista que fiz nesta viagem, com o ministro da Fazenda.
Espero que, a partir de agora, vocês deem mais valor e se beneficiem da ignorância, sempre que possível, na vida pessoal e, sobretudo, na profissional.
Apesar de começar a cogitar a possibilidade de enviar um repórter para a cobertura do G-8 em São Petersburgo uma semana antes, a direção do jornal só bateu o martelo às vésperas da viagem. Como esse corre-corre de última hora faz parte da vida de jornalista, você só acredita quando vem a oferta firme. E isso aconteceu numa semana bastante conturbada em que eu, como diz uma amiga, estava “cheia de costura para entregar”.
Preparava duas reportagens especiais para a edição de domingo, tida como privilegiada pelo alto índice de leitura (isso, naquela época). Assim, quando recebi o “se prepare para ir a São Petersburgo”, não tive muito tempo para processar o que exatamente aquilo implicaria. A mensagem foi recebida por mim, como: “F.! Tenho que antecipar o fechamento das minhas ‘especiais’”.
Com foco nelas, fiz a mala, parti para o aeroporto (escrevendo os textos), encontrei uma pessoa do jornal em Guarulhos para me entregar dólares para viagem. Quando dei o enter para enviar os textos para a redação, estava sentada no chão, num canto do aeroporto, perto de uma tomada e com uma conexão via modem (nossa, como a vida melhorou de lá para cá!). Respirei aliviada e, só então, refleti: estou indo para Rússia tranquila… não sabia de nada a inocente aqui.
Ignorância fase 1
Àquela altura, eu já conhecia muitos países, seja pelo trabalho ou pela paixão por desbravar culturas e lugares. Então, a Rússia seria mais um, tipo piece of cake, moleza, pensava, acomodada no avião da Lufthansa que, na conexão em Frankfurt, trocou o sonoro sotaque brasileiro, dominante entre os passageiros, por um ríspido e bravo alemão. E, com eles, desembarquei em São Petersburgo, onde começa a aventura na ignorância.
Eu não fazia a menor ideia de que: i) praticamente ninguém, naquela época, falava inglês na Rússia; ii) a simples pergunta “Você aceita dólares?” provocaria reações semelhantes às a um convite para sequestrar o Putin; iii) o aeroporto fechava; iv) qualquer carro é um taxi em potencial, desde que você saiba negociar com o motorista para ir aonde você precisa; v) era muito difícil dizer sequer “obrigada”, em russo; e vi) meu avião pousaria depois das 23h. Enfim, deu para notar, eu não sabia de nada. E, lembre-se de que estamos em 2006. Muita coisa mudou para melhor desde então.
Mas, como tudo tem um lado bom, meu festival particular de ignorância me permitiu, já na largada, focar na solução dos problemas que surgiram.
Em vez de passar boa parte do voo pensando e conjecturando sobre como faria isso, como seria aquilo e se não desse certo e se não me entendessem ou se não aceitassem dólares lá… eu estava linda, leve e relaxada, sem a menor ideia de nada do que viria a enfrentar.
Hoje, depois de alguns anos estudando técnicas de coaching e de programação neurolinguística, entendo que, livre dos medos que poderiam ter me angustiado no voo e criado bloqueios, foquei na busca de soluções e, mais importante, na hora em que isso foi necessário.
Sabe aquele momento “respire-olhe-para-frente-e-pense-em-como-sair-dessa”? Normalmente, sofremos muito antecipadamente porque tentamos “racionalizar” o que desconhecemos, o que ignoramos. Você não tem a menor ideia de como é, do que acontece, mas quer prever tudo para já sair de casa com o Guia Prático de Soluções a Serem Adotadas.
Isso vale também para situações que envolvem pessoa com as quais convivemos. Imagine, por exemplo, um colega de trabalho, do qual você já tem um “histórico” gravado na mente. Isso faz com que cada ação ou reação seja analisada numa escala de inferências que inclui registros anteriores de posturas, comentários, brigas, afinidades e desentendimentos. Aí, o fato em si deixa de ser analisado pelo que ele é realmente e passa a valer a interpretação subjetiva daquela pessoa em determinada situação.
Quem nunca se flagrou pensando: “Mas não foi isso que ele quis dizer! Quando faz isso é porque está querendo insinuar que…”
Na prática, nesse caso, de nada adianta a frase pronunciada pela pessoa, mas sim o fato de ter saído da boca daquela pessoa, alguém que, em algum momento, marcou-nos ao fazer determinado comentário, defender uma posição específica. E se alguém não vê da mesma forma, é porque não conhece a pessoa.
Isso é absolutamente natural. Somos humanos. O que quero destacar aqui é que, quando “blindamos” o problema das nossas inferências, temos chance de analisá-lo, mensurá-lo e tratá-lo de forma mais fácil e direta. Simplesmente colocamos o problema (e todos os acessórios) do foco e buscamos soluções. Acabamos por nos beneficiar por ignorar os acessórios.
Uso aqui minha estreia na Rússia para tentar ilustrar. Fui beneficiada por isso no primeiro minuto em solo russo. Antes de o avião pousar, a aeromoça me entregou aquela ficha da imigração. Mas tudo estava escrito em russo, o que me impossibilitava de saber em qual quadradinho colocaria nome, sobrenome, número do passaporte etc. Educadamente, pedi uma ficha em inglês, ao que ela me informou que a imigração, na época, exigia que fosse aquele. Mas ela me daria um “guia” para eu preencher. Ah, problem solved.
Como o avião já estava prestes a pousar, deixei para fazer isso em terra. Queria curtir minha chegada para desbravar o “mundo comunista”, mas algo me chamou à realidade, mostrando que eu não estava numa viagem no túnel do tempo e, àquela altura, o “ex” fazia toda diferença no atributo “comunista”.
A primeira imagem que tive foi de uma enorme propaganda do Citibank presa no finger que seria acoplado ao avião para desembarque dos passageiros. De fato, aqueles caras – entendam como caras: Lenin e vários integrantes das troikas, lideranças coletivas que comandaram o país – devem estar se revirando no túmulo.
Ao descer, procurei um cantinho no desembarque e acomodei-me no chão mesmo para preencher a bendita ficha. Antes que vocês achem que jornalista tem alguma tara por sentar no chão, saibam que somos, diariamente, no nosso trabalho, treinados para nos virar em qualquer condição, sejam elas as mais inóspitas possíveis. Na era do jornalismo eletrônico, então, com a proliferação de sites, serviços de notícias em tempo real, qualquer cantinho que nos garanta visibilidade do ambiente e uma tomada com energia será facilmente transformado no nosso bunker.
Já no guichê da imigração, o russo me olha com o semblante tão sério e emburrado que meu sorriso simpático parecia denunciar um disfarce: “Ok, você me pegou, eu sou uma agente infiltrada, pode me prender”, pensei. Mas sustentei minha simpatia mesmo assim. Ele falou, falou e falou comigo em russo (falar é uma forma simpática de descrever, porque mais pareciam grunhidos). Como eu não fazia a menor ideia do que rolava ali, apenas sorri e assenti com a cabeça. E deu certo, porque meu passaporte foi carimbado e segui. (Nesta Copa de Futebol, ouvi relatos da cordialidade de alguns agentes. Ainda bem que as coisas evoluem, né?).
Ah, aqui um registro sobre o embargo à carne brasileira que tentávamos derrubar nesta época.
“Queria curtir minha chegada para desbravar o “mundo comunista”, mas algo me chamou à realidade, mostrando que eu não estava numa viagem no túnel do tempo e, àquela altura, o “ex” fazia toda diferença no atributo “comunista”.”
Ignorância fase 2
Entrando oficialmente em solo russo, olhei para os lados e não havia simplesmente ninguém. Parecia aqueles filmes do Stephen King, sabe? Num piscar de olhos (pelo menos para mim), todos meus amigos alemães do voo tinham evaporado. Tentei me comunicar com o guarda, trocar dólares por rublos num caixa eletrônico, pegar um taxi e não fui bem-sucedida em nenhuma dessas tentativas. (Quer saber? Se o Jason ou o Freddy Krueger aparecessem ali, acho que nem estranharia)
Mais uma vez, o desconhecimento de que chegaria a um aeroporto, de que ele estaria literalmente fechado, apenas com uns guardas russos que sequer me olhavam nos olhos, e com uma máquina que cuspia as notas de dólares que eu tentava trocar por rublos, levou-me novamente ao foco: onde está a solução para isso tudo aqui? A resposta: um banco de madeira e ferro encostado perto de uma casa de câmbio (fechada, é claro). Na pior das hipóteses, durmo ali até as pessoas aparecerem para trabalhar.
Decidida a me acomodar no banquinho, avistei uma mulher que recolhia um banner. Fui conversar com ela, expliquei que era jornalista etc., mas o papo se encerrou bruscamente quando, após ela me dizer para ir lá fora e ver se tinha qualquer carro e negociar para ele me levar ao hotel, eu fiz a pergunta proibida: “Ele aceita dólar?”. O olhar dela de terror para mim e a resposta “Ah, eu não tenho nada a ver com isso. O problema é seu e dele” ainda estão vivos na minha memória.
Imediatamente, ela me virou as costas e eu, sem entender direito o que aconteceu ali, fui para a frente do aeroporto certificar-me de que não seria tão simples: não havia carros àquela hora. Voltei, então, para minha primeira solução (o banquinho de madeira e ferro).
Resignada, fui despertada pela moça já recomposta. Ela estava ali a trabalho, recolhendo os banners do receptivo da reunião do G-8 e me ofereceu carona até meu hotel. Entre o banquinho e a possibilidade de me entender melhor com a única pessoa que falou comigo em inglês, optei por segui-la. Afinal, ela não me parecia uma agente da KGB incumbida de sequestrar jornalistas estrangeiros. E, se fosse, eu ignorava isso.
No carro, explicou-me a dificuldade do idioma que enfrentaria, já que poucas pessoas falavam inglês. Ela mesma havia sido recrutada na universidade para trabalhar no receptivo das autoridades que viriam para o evento. Depois de meia hora de bate-papo com minha nova amiga, desci do carro na porta do meu hotel, ainda ignorando que mais problemas estavam por vir (exemplos: sem conseguir restaurantes com menu em inglês, acabei tomando sopa gelada, duas senhorinhas ensandecidas quase rasgaram meu mapa e sem ele, estaria lá perdida até hoje).
Como já me alonguei muito, isso fica para a próxima conversa. Mas uma coisa é certa: jamais seria capaz de prever todos os percalços dessa viagem para ter as soluções num guia de bolso. Ainda bem, porque essa foi uma das experiências que mais agregaram aprendizado à minha história de vida.
Jornalista e economista com mais de 25 anos de experiência nos grandes jornais do país (Folha, Estadão, O Globo, Gazeta Mercantil, Correio Brasiliense, TV Record), especializada na cobertura financeira e política em Brasília, foi assessora especial no Ministério da Fazenda.