Eu sei o que vivi em 2020. Não sei o que meu cérebro absorveu!

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O que você trouxe para 2021 aí dentro, tão escondidinho que nem faz ideia? Como lidar com o seu inconsciente e com o do seu time?

2020, ou melhor, “vinte-vinte”, foi um misto de novidade com medo, angústia, confusão, reinvenção, insegurança, inovação. Um teste diário de sobrevivência em que não sabemos ainda como nos saímos. Se fosse um jogo, teríamos certeza de que avançamos de fase; afinal, estamos aqui. Mas o que levaremos de “vinte-vinte” sem nem saber direito que assim o estamos fazendo? Quais as marcas escondidas desse ano louco que ainda se faz presente em “dois mil e vinte e um”? Como todos nós, pais, filhos, amigos, profissionais e, em especial, líderes vamos lidar com isso? Vem daí a minha ideia de lançar algumas provocações neste texto. Uma tentativa de ajudar na reflexão, num olhar mais cuidadoso para dentro e, também, para os lados, que nos ajude a entender que, por vezes, o novo normal passa por aceitar que você não está normal. E tudo bem.

Afinal, somos corpo e mente, certo? Ou, para ser mais justa: somos mente e corpo, já que o cérebro é a nossa central de comando. Mas, apesar da relevância na hierarquia da estrutura corporal, a gente, de uma forma geral, costuma negligenciar a mente em detrimento do corpo. Ou costumávamos, até 2020?

Vinte-vinte” foi um ano de muito exercício para a mente. A gente pode até nem ter se dado conta ainda, mas, enquanto fomos privados de exercitar o corpo da forma que costumávamos na nossa rotina, seja na academia ou simplesmente andando livremente pelas ruas, a nossa mente fez boas maratonas.

Do início dessa crise sanitária na China à decretação da pandemia, seguindo por uma sequência aterrorizante mundo afora, todos nós fomos impactados por sensações, sentimentos, experiências pessoais, familiares ou de desconhecidos que nos marcaram. E os nossos sentidos são o alimento do cérebro, correto? Usando a citação do neurocientista Ran Hassin, da Universidade Hebraica de Jerusalém, o cérebro é abastecido pelos olhos, ouvidos e outro sentidos e o inconsciente traduz tudo em imagens e palavras.

Nossa consciência ocupa menos de 5% do cérebro

Com isso, imagina a confusão que pode estar aí e a gente nem sabe depois desse “vinte-vinte”? Sim, porque, se o nosso cérebro fosse uma caixa, a consciência ocuparia apenas um cantinho, correspondente a cerca de 5% do espaço. Os outros 95% ficariam para o inconsciente, aquele cara que trabalha nos bastidores, sem que seu esforço seja perceptível, mas ele, na verdade, está o tempo todo operando freneticamente mesmo quando estamos no maior relax.

Nenhuma pretensão aqui de discutir as teorias da neurociência ou da psicanálise a respeito disso, mas tão somente com a intenção de destacar impactos que talvez seja importante observar agora que “vinte-vinte” se foi e “dois mil e vinte e um” chegou, porém, ainda com incertezas que não se dissiparam com a virada do ano-calendário.

Temos que, pela psicanálise, a interpretação inconsciente de eventos negativos é fonte de muitas aflições humanas. Mesmo com todas as correntes paralelas, estudos de neurocientistas apontam que o inconsciente pode amplificar emoções.

E o medo de perder o emprego, a segurança?

Quero chamar atenção apenas para o fato de que, se o inconsciente é carregado de emoção e estudos apontam que o inconsciente exagera as coisas ruins, podemos inferir que isso afetará nosso comportamento depois de “vinte-vinte”? Seremos indivíduos mais aflitos em “dois mil e vinte e um”? Seremos mais sensíveis aos problemas alheios? Seremos mais medrosos, precavidos, exagerados? E nosso medo de perder o emprego? E a segurança da nossa famílias, amigos? Qual o impacto disso para os nossos relacionamentos, comportamentos? Como as empresas, feitas por pessoas e para pessoas, vão lidar com isso? Como os líderes vão guiar seus times, compostos por pessoas que carregam dentro de si todas essas aflições?

Normalmente, sou uma pessoa positiva e autoconfiante. Especialmente após minha dedicação aos estudos sobre PNL (programação neurolinguística) e “ciências comportamentais”, redobrei minha atenção à importância do pensamento positivo na nossa vida. Mas confesso que sucumbi a “vinte-vinte”.

Sucumbi a 2020

Como todo mundo, no ano passado, passei por várias fases durante o auge da pandemia. Jurava que estava infectada pela Covid, sem ter sequer levantado do sofá na sala de TV, apenas vendo o noticiário; virei chef de cozinha, professora de ensino à distância, devoradora e promotora de lives; briguei na fila do supermercado porque um senhor não respeitava o distanciamento mínimo; viajei de avião  vestida como se fosse o Dustin Hoffman naquele filme Epidemia; consumi litros e mais litros de álcool 70%; levo na bolsa ou tenho no carro desinfetantes em spray, dezenas de vidrinhos de álcool, lenços umedecidos com álcool e todos os tipos de máscaras (das de tecido de oncinha às com tripla proteção usadas pelos médicos, passando pelas de rendas do Ceará). Enfim, sou a prevenção ao covidambulante.

E foi com tudo isso arquivado no meu inconsciente a partir de toda essa experiência que abri o resultado do PCR do meu marido (que é do grupo de risco) e li: “detectado”.  Em mais de 20 anos juntos, ele não esteve gripado nem 5 vezes, ficamos nove meses isolados mesmo sendo um casal megassociável, e ele pegou Covid no apagar das luzes de “vinte-vinte”. Ok. Respira. Afinal, sou uma pessoa extremante otimista e autoconfiante de que as coisas vão dar certo. Detalhe: ele nem sintomas teve direito. Mesmo assim, foi impossível evitar relembrar, em determinados momentos, o terror a que assisti na TV ou vivi por meio de amigos que perderam parentes queridos.

Isolado no andar de cima da minha casa, que foi transformado na ala Covid, enquanto eu e minha filha de dez anos ficamos no piso de baixo, meu marido pouquíssimos sintomas teve: um dia de moleza e febre, nada de falta de ar, cansaço ou coisa do gênero, paladar e olfato ok, acho até que o paladar aumentou (rsrsrsrs). Todo protocolo de medicamento ok na parte de cima da casa.

Ainda assim, na parte de baixo, na calada da noite, por vezes, o escuro se tornava assombroso quando a imaginação voava por todo aquele arquivo de imagens e histórias acumuladas durante o ano, as incertezas sobre a doença… A gente não sabe nem que médico procurar, se é bom ou não ir a um hospital, afinal, se estiver com algo fraco, pode se expor mais. Não existe o especialista em Covid. Nosso apoio foram uma ginecologista, um reumatologista e um pediatra, tudo on-line.

Confrontei a angústia potencializada pelo meu inconsciente com a razão e a fé, como costumo fazer. Nesta semana, um amigo testou positivo. Logo que soube, fiz questão de falar com ele. Na verdade, queria testar se ele, apesar de bem, estava sufocando ou confrontando seus medos. Em 15 segundos de conversa e alguns perguntas estratégicas que a gente aprende a desenvolver, pude sentir uma angústia velada, disfarçada por uma tranquilidade que não resiste quando o termômetro se aproxima dos 38 graus.

Falei rapidamente, tentando deixar a minha receita: não hesite e confronte seus pensamentos ruins, não os deixe alimentar angústias e lembre-se de que seu inconsciente tende ao exagero. Na dúvida, faça exames.

Nenhuma intenção aqui de, com essa reflexão, pregar que estamos inconscientemente em pânico coletivo. Muito pelo contrário. “Vinte-vinte”, acredito, foi um ano que criou marcas inconscientes com as quais vamos conviver. E o entendimento disso pode ser um passo importante para confrontar esses marcadores, a melhor forma de superar angústias, segundo os especialistas nessa área.

Assim, atenção e paciência podem ajudar muito. Em especial para líderes que, além de cuidar do efeito de “vinte-vinte” nos seus próprios inconscientes, são responsáveis por guiar pessoas, ativar talentos e extrair deles o melhor. Em “dois mil e vinte e um”, vc precisará de um jeitinho especial para fazer isso. Descubra e calibre o seu. Afinal, nem todo mundo é como seu Antônio e seu Raimundo, os dois pescadores baianos que ficaram quatro dias à deriva e, após resgatados, explicaram à TV Bahia como sobreviveram nesse período: “Peixe tinha, farinha tinha, água também tinha e, aí, fizemos uma moqueca e fomos tapeando [a fome] até o socorro chegar”.

PS: Lembro que, na virada de 2019, pensei: “Vinte-vinte”! Que diferente!!!”. Ingênua, nem imaginava que seria historicamente diferente para o mundo. “Vinte-vinte”… humm. Nunca mais quero chamar um ano assim. Vamos lá “dois mil e vinte e um”!!!

Sheila D'Amorim

Sheila D'Amorim

Jornalista e economista com mais de 25 anos de experiência nos grandes jornais do país (Folha, Estadão, O Globo, Gazeta Mercantil, Correio Brasiliense, TV Record), especializada na cobertura financeira e política em Brasília, foi assessora especial no Ministério da Fazenda.